12 de jul. de 2012

Quando a morte conta uma história você deve parar para ouvir.




Todas as noites eu ficava a espionar Seu Pereira que saía de casa para trabalhar numa firma que ficava do outro lado da cidade. Sempre à uma e trinta da manhã ele deixava seu lar com um ar cansado, maleta na mão, blazer preto e caminhava cinquenta metros até o terminal, onde o fretado o aguardava. 
Eu ficava na frente da casa dele do outro lado da rua, escondida atrás de uma estátua velha que era sustentada por um pedestal. A iluminação pública deixava a desejar, as madrugadas de outono eram frias e, num céu nebuloso, as estrelas mais fortes sobreviviam. Às vezes, a lua vinha dar "bom dia", o que colaborava para um cenário bucólico. Os carros não transitavam, as pessoas não passavam, sua esposa e filhos já dormiam e as casas tinham as luzes apagadas. A cidade tornava-se deserta em meio à escuridão, mas eu sempre estava a acompanhá-lo.
Certa vez, logo depois de Seu Pereira fechar o portão, eu saí de trás da estátua, atravessei a rua e passei por trás dele. Seu Pereira pisou em falso num pequeno buraco encravado na calçada e torceu o pé. Ficou parado no chão, fez uma massagem, levantou-se e foi-se manco. Subi no fretado também. O assento do Seu Pereira era sempre na primeira fila, e eu fiquei lá atrás, ao lado da janela, a ver a paisagem passar. Pouco antes de o ônibus chegar à empresa que era do ramo de papel e plástico onde Seu Pereira trabalhava, presenciei, através da janela, um acidente: um motoqueiro atravessou o sinal vermelho e um caminhão o atropelou. Mas eu ainda me concentrava em Seu Pereira.
No ofício de seu trabalho, ele era conhecido apenas como Pereira, e eu estava lá dentro da firma a acompanhar o seu trabalho de operador de máquina de corte e vinco. Certa feita, a máquina quebrou. O supervisor ordenava não desligar nada, ou seja, enquanto Seu Pereira consertava a mesma devia permanecer ligada e, nessa ocasião, o de do médio de Seu Pereira foi mutilado. O sangue espalhado era inevitável. Seu Pereira ficou uma semana sem sair de casa.
Dias depois, ele teve uma discussão com a mulher – coisas de casal. As crianças andavam doente, a esposa não trabalhava, e ele não tinha dedo, mas sua rotina profissional continuava. E eu sempre a vigiá-lo. Uma vez houve um assalto em uma casa na travessa da rua onde seu Pereira morava. Duas pessoas saem correndo em meio às trevas da escuridão: o rapaz que está atrás atira no que corria à frente, e, por questão de milésimos, o projétil não atinge a cabeça de Seu Pereira.
Passaram-se dois anos e, confesso, eu já estava cansada. Seu Pereira ganhou indenização da empresa por danos morais e materiais, além de um auxílio alimentação. Até os 70 anos Seu Pereira, que tinha meia idade, estava garantido com a folha de pagamento da empresa, além de um bônus de 50 salários mínimos pela perda do dedo. Seus filhos estavam crescidos e sua esposa já inserida no mercado. Eles se mudaram para outro estado por uma melhor qualidade de vida.
Aliás, vida foi o que resolvi entregá-lo. Hoje a família vive feliz, e pode ter certeza que eu não vou infernizá-lo por um bom tempo. 

“Os homens são como ondas: quando uma geração floresce, a outra declina.” – poeta épico da Grécia antiga

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